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A Emenda nº 3 do projeto de lei da Super-Receita e as tentativas de legitimação do "trabalhador-PJ"

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O artigo analisa as recorrentes iniciativas de lobbies empresariais para legitimar a chamada “pejorização do trabalhador”, isto é, a ilícita transformação do trabalhador da condição de “empregado” para “pessoa jurídica”.

Este artigo tem como objetivo fazer uma recuperação das recorrentes iniciativas de lobbies empresariais para legitimar a chamada "pejorização do trabalhador", isto é, a ilícita transformação do trabalhador da condição de "empregado" para "pessoa jurídica" - o "trabalhador-PJ". Neste sentido, especial destaque é dado à inclusão da Emenda nº 3 no Projeto de Lei nº 6.272, de 2005, que institui a Secretaria da Receita Federal do Brasil ou "Super-Receita", aprovada recentemente no Congresso Nacional e que, no momento em que este artigo é escrito, encontra-se em fase de sanção presidencial. A Emenda nº 3 determina que para um negócio, ato ou pessoa jurídica seja considerado ilegal, dado o reconhecimento de uma efetiva relação de emprego, será necessária a prévia decisão judicial para que o agente fiscal possa exercer suas atribuições.

Não pretendo, contudo, discutir os aspectos que envolvem a própria criação da Super-Receita do Brasil. Aqui basta dizer que a formação de uma Super-Receita - que unificaria a administração tributária da União, hoje dividida entre a Secretaria da Receita Federal, a Procuradoria Geral da Fazenda e a Secretaria da Receita Previdenciária - tem sido também objeto de intensos debates.

Desde a década de 1990, temos assistido a uma crescente precarização da contratação do trabalho no Brasil. São diversos os indicadores que confirmam este fenômeno. Cite-se, por exemplo, a Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), realizada pelo convênio DIEESE-SEADE, que constatou que, entre 1989 e 2005, o número de ocupados, na Região Metropolitana de São Paulo, cresceu tão somente 28%, enquanto o total de subcontratados aumentou em 178% e o de "autônomos que trabalham para uma empresa só", 157%.

Para fins deste artigo, interessa-nos em particular chamar a atenção para os trabalhadores que são contratados como pessoa jurídica, em especial na forma de empresa constituída por "1 pessoa só", isto é, a empresa cujo trabalhador é o próprio proprietário. De acordo com estudo do IBGE veiculado em 2004, com base no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), havia no País aproximadamente 4,5 milhões de empresas cadastradas naquele ano, dos quais 3,1 milhões (68%) são "empresas sem empregados". Nestas, verificam-se apenas os registros do proprietário ou dos sócios. O próprio IBGE diagnostica que, na grande maioria destes casos, a empresa é assim constituída com o objetivo de modificar o vínculo do trabalhador com a empresa em que ele realmente trabalha.

Cabe ter claro que essa transformação de vínculo tem o nítido objetivo econômico da redução do pagamento de encargos, impostos e contribuições. Contudo, a mudança também tem importantes implicações no campo jurídico. Ela significa que o trabalhador passa da condição de empregado sujeito às normas da CLT, para a de pessoa jurídica prestadora de serviços, subordinada às normas mais flexíveis do Direito Comercial e Empresarial. Isto em que pese a relação do trabalhador com a empresa em que trabalha caracterizar-se, na maioria das vezes, como uma relação de emprego, tendo em vista as características de subordinação, pessoalidade, onerosidade e não eventualidade. Vale dizer, a mudança de vínculo "empresa-empregado" para "empresa-empresa" configura-se em geral em ato ilícito.

Vejamos como ocorre esta "pejorização do trabalhador" na prática. É relativamente simples. Pressionadas atualmente a reduzir custos por todos os meios possíveis, as empresas "convidam" parte dos seus empregados – em geral, aqueles de maior qualificação, de maior remuneração e inseridos em cargos de confiança - a constituírem empresas (as PJs). Dessa forma, o empregado passa a "prestar serviços" a companhia e assim é remunerado. Não raro, o representante da empresa alega que empresa e empregado sairão ganhando nesta mudança, posto que ao recolher menos encargos e impostos a companhia poderá pagar até mesmo um pouco mais para o trabalhador. Quase sempre, todavia, o empregado tem grandes perdas, na forma de eliminação de pagamentos como reajustes salariais, FGTS, 13º salário, férias, previdência, participação nos lucros e resultados, abonos entre outros. As empresas também não precisarão seguir a legislação do trabalho em termos de jornada, segurança, piso salarial, dentre outros. De resto, o empregado ainda terá que arcar com despesas com o contador e o pagamento de impostos e contribuições de abertura, manutenção e encerramento da firma.

Salta aos olhos as diversas iniciativas dos lobbies empresariais para que esta relação ilícita seja legitimada pela lei, em meio aos mais diferentes conteúdos de projetos de lei.

Entre as tentativas está o projeto de lei de autoria do deputado Sandro Mabel (Projeto nº 4330/2004), que pretende regular as relações de trabalho nos atos de terceirização de serviços. Este projeto tramita há alguns anos no Congresso Nacional. Além de prever a terceirização da atividade-fim ou inerentes das empresas (ferindo o que diz a Súmula 331 do TST), ele também estabelece que não se configura vínculo empregatício entre a empresa contratante e os trabalhadores ou sócios das empresas prestadoras de serviços, qualquer que seja o seu ramo. A Central Única dos Trabalhos (CUT), as demais Centrais Sindicais e outras instituições do mundo do trabalho têm acompanhado com bastante preocupação o percurso deste PL no Congresso.

Outra iniciativa para legitimar a fraude trabalhista representada por este tipo de "PJ de 1 pessoa só" foi o artigo 134 da MP nº 255, a chamada "MP do Bem", aprovada na Câmara dos Deputados em 27/10/2005. Esta MP continha cerca de 140 artigos que concediam uma série de benefícios fiscais (para a exportação, compra de bens de capital, inovação tecnológica e inclusão digital). Um dos artigos (justamente o 134) não poderia, todavia, ser classificado como uma bondade, a não ser que neste conceito ficássemos limitados aos interesses de determinados lobbies empresariais. Este artigo estabelecia que:

"Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados de sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50º da Lei nº 10.406, de janeiro de 2002 - Código Civil. Parágrafo Único: O disposto neste artigo não se aplica quando configurada a relação de emprego entre o prestador de serviço e a pessoa jurídica contratante, em virtude de sentença judicial definitiva decorrente de reclamação trabalhista". (grifo nosso).

À época, chamamos a atenção para a nossa preocupação com o fato de que a redação do art. 134 da MP nº 255 deixava claro que somente aquele empregado que ingressasse com ação poderia ter reconhecido o vínculo. Sabe-se bem, porém, que dificilmente o empregado prestador de serviços na forma de "PJ" entra com ação na Justiça enquanto estiver trabalhando na empresa. Mais ainda: raramente o empregado entra com ação mesmo depois de dispensado da empresa. Isto porque este tipo de postura é visto como uma "mácula" em seu curriculum profissional, muitas vezes obstaculizando a conquista de um novo emprego. Lembramos também que a decisão judicial definitiva acontece quando não cabem mais recursos. Isto significa que o empregado não poderá executar a empresa de maneira provisória, enquanto a ação não transitar em julgado. Ou seja, apenas depois de alguns anos do ingresso da ação é que o trabalhador terá o seu direito executado.

Além disso, o dispositivo colidia com o artigo 966 do Código Civil, que estabelece que não é empresário a pessoa que exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, salvo se o exercício da profissão constituir elemento da empresa. Por exemplo, o professor que exerce pessoalmente a profissão não pode ser considerado empresário. Mas se o mesmo professor resolve montar uma escola e contratar outros professores, aí sim será empresário.

O artigo 134 era a nosso ver inconstitucional, pois desrespeitava o princípio de proteção às relações de trabalho (artigo 7, caput, e inciso I da CF), e confrontava também o artigo 9º da CLT, que diz que "serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação".

Após várias pressões do sindicalismo e de outras forças sociais, o parágrafo único do artigo 134 acabou não sendo sancionado pelo Presidente da República.

Mais recentemente, defrontamo-nos com o mencionado Projeto de Lei nº 6.272/2005, votado no Congresso Nacional em 13/2/2007 e que atualmente está na mesa do Presidente da República para sancioná-lo. Já dissemos que este projeto da Super-Receita gerou várias polêmicas. Mas o que nos interessa analisar aqui é a Emenda nº 3, de autoria de ex-senador Nei Suassuna (PMDB-PB), que foi subscrita por mais de 60 senadores. Esta emenda foi assim defendida em plenário pelo senador Onyx Lorenzoni (PFL-RS): "[A empresa de ‘uma pessoa só’ é] a nova forma de produção, para ter ganho de produtividade, para ter redução de custos, para aumentar a empregabilidade (...)".

Já o Parecer do Deputado Pedro Novais, que é Relator do Projeto de Lei, foi ainda mais estarrecedor:

"Nos países avançados, a legislação trabalhista é quase sempre extremamente liberal. O relacionamento diferenciado entre patrões e empregados se verifica, como no Japão, não por força do ordenamento jurídico, mas em decorrência de costumes solidamente arraigados no seio da população.

Na opinião da relatoria, o Estado não pode substituir a vontade do profissional que se lança ao mercado de trabalho sob o guarda-chuva de empresa individual. Cabe a ele, e não à fiscalização estatal, emitir juízo de valor a respeito, salvo em situações extremas, nas quais de fato é necessária a intervenção do poder de polícia estatal. A excepcionalidade de situações como essa de fato necessita, para não se banalizar, do prévio crivo de autoridade judicial. A emenda merece, pois, pleno acolhimento".

A Emenda nº 3 propõe alterar o artigo 6º da Lei nº 10.593/2002 nos seguintes termos:

"No exercício das atribuições da autoridade fiscal de que trata esta Lei, a desconsideração da pessoa, ato ou negócio jurídico que implique reconhecimento de relação de trabalho, com ou sem vínculo empregatício, deverá sempre ser precedida de decisão judicial".

E de qual "autoridade fiscal" trata a lei nº 10.593? Respondo: das auditorias da Receita Federal, da Previdência e do Trabalho. Ou seja, com uma simples alteração de que trata a Emenda nº 3, retira-se do Ministério do Trabalho, na pessoa de seus fiscais, o poder de inspecionar se existe vínculo de emprego ou não em uma relação de trabalho em que há suspeita de situação irregular do trabalhador [1].

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Diga-se com toda a ênfase que a Emenda nº 3 do Projeto de Lei nº 6.272 constitui-se em verdadeira afronta aos princípios de um Estado Democrático de Direito, que tem como um dos fundamentos os valores sociais do trabalho. Pergunta-se: como tais valores poderão ser exercidos plenamente se o Estado deixa de ter o poder coercitivo de fazer cumprir a lei?. A Constituição Federal (CF) determina que compete à União organizar, manter e executar a inspeção do trabalho (art.21, inciso XXIV). Além disso, a ordem econômica está fundamentada na valorização do trabalho humano, cabendo ao Estado, como agente normativo e regulador, as funções de fiscalização da atividade econômica (art. 170 e 174 da CF).

Alterações como esta na legislação poderão levar a situações absurdas, como a impossibilidade de se retirar trabalhadores sujeitos ao trabalho escravo. Isto porque o poder para esta retirada foi extraído dos fiscais do trabalho.

Lamentamos que temas complexos como este sejam aprovados como penduricalhos em diferentes projetos de lei, mesmo que estes guardem pouca relação com o objeto em questão. É o caso da Emenda nº 3, que foi inserida em uma lei que trata da unificação de órgãos de arrecadação da Fazenda e da Previdência, e que teve, pasmem, aprovação expressiva: 304 a favor X 146 contrários. Será que todos os deputados tinham a dimensão do que representava esta "pequena" emenda no que toca à legislação trabalhista?

Acrescente-se, ainda, que uma relação de emprego sempre ocorrerá se existir a pessoalidade, a subordinação, a onerosidade e a não eventualidade do serviço. Estes são os requisitos que moldam o conceito de empregado prescrito pela lei (CLT). Devem ser repudiadas todas as tentativas de inserir a reforma trabalhista por via de leis paralelas, objetivando, entre outros, flexibilizar a relação de emprego, de modo quase sorrateiro, sem uma ampla discussão com toda a sociedade.

Registre-se, por fim, que o pano de fundo desta discussão são os processos de terceirização, que têm avançado continuamente e contribuído em muito para a precarização das relações do trabalho. Apesar disso, não existe até o momento uma legislação específica sobre a matéria. A principal referência jurídica do assunto é a citada Súmula 331 do TST. Diante desse quadro de frágil ordenamento jurídico, a terceirização costuma gerar, ao final, desemprego, incremento de jornadas, aumento dos acidentes de trabalho e de doenças profissionais, redução de benefícios, diminuição de remuneração e degradação do meio ambiente do trabalho.

Por isso, acreditamos que é fundamental debater os termos de um Projeto de Lei que, tendo em conta a realidade brasileira, busque efetivamente estabelecer normas que regulem a terceirização, impedindo a precarização do trabalho [2]. Evidentemente, neste PL deveria constar uma clara referência a quais situações em que as "PJs de 1 pessoa só" são legítimas e quais elas são meramente tentativas de fraudes trabalhistas.


Notas

  1. Não fosse apenas isto, a alteração apenas do artigo 6º da Lei nº 10.593/2002 implicará em uma contradição dentro da própria Lei 10.593. Isto porque logo a seguir, no seu artigo 11, é dito que dentre as atribuições dos fiscais do trabalho está a de "verificação dos registros em Carteira de Trabalho e Previdência Social - CTPS, visando a redução dos índices de informalidade".
  2. Mencione-se que a Central Única dos Trabalhadores, por meio de sua Secretaria Nacional de Organização, vem buscando debater um conjunto de ações para o combate à precarização do trabalho resultante dos processos de terceirização. Entre essas ações está o esforço em elaborar uma proposta de projeto de lei de regulamentação da terceirização. A primeira versão da proposta de PL da CUT pode ser vista na chamada "Agenda dos Trabalhadores: Projetos e temas da CUT para o diálogo com os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário", de novembro de 2005. Embora as versões posteriores tenham alterado e aperfeiçoado pontos da proposta, a leitura da versão inicial já permite uma primeira impressão do enfoque regulador proposto pela Central. A autora deste artigo participou do grupo técnico que contribuiu para a elaboração da proposta.
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Sobre a autora
Maria da Consolação Vegi da Conceição

Advogada. Mestranda em Direito na UNIMES. Professora de Direito na Fundação Santo André. Coordenadora Jurídica do Sindicato dos Bancários do ABC.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CONCEIÇÃO, Maria Consolação Vegi. A Emenda nº 3 do projeto de lei da Super-Receita e as tentativas de legitimação do "trabalhador-PJ". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1330, 21 fev. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9517. Acesso em: 22 nov. 2024.

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